terça-feira, 5 de agosto de 2014

Morder a lingua




Estamos a meio da Volta a Portugal. Já passaram 6 dias nos quais pedalámos durante 899 quilómetros. Faltam ainda 6 dias para cumprir o objectivo de chegar a Lisboa, mas um deles é de descanso. O de amanhã.

Se já estou arrependido de ter regressado? Não, claro que não estou! Se bem que há momentos em algumas etapas me faço a pergunta: “O que é me passou pela cabeça para voltar a querer sofrer desta maneira!?” Ontem terá sido um desses dias.
Depois de ultrapassar e suportar etapas como a de Montalegre em que as condições climatéricas foram terríveis, ou mesmo a dureza da etapa da Sra. da Graça, ontem que teoricamente seria uma etapa mais tranquila, foi nesta em que por alguns momentos pensei que poderia estar em casa tranquilo em vez de passar novamente por todo este sofrimento!

A etapa de ontem foi a mais curta até ao momento. Apenas 163 quilómetros. Mas começou logo com uma montanha de 2ª categoria de 7,5km. A missão da minha equipa LA-ANTARTE-ROTA DOS MÓVEIS era ajudar ao meu colega António Carvalho (Toni) a pontuar na mesma. Ele é o líder desta classificação.
Mal deu o tiro de partida, ainda numa fase em descida que antecedia o inicio da montanha, a velocidade foi alucinante! Foram 4.400 metros de descida com curvas e contra-curvas apertadas a uma média de 60km/h. Quando começou a montanha começaram de imediato os ataques. Havia equipas que queriam endurecer ao máximo a corrida para desgastar a equipa do líder (OFM), por outro lado a nossa equipa não queria deixar ir nenhuma fuga para Toni ganhar esta contagem de montanha. Como me sentia bem de imediato fui para a cabeça do pelotão e coloquei um ritmo constante de forma a que os atacantes nunca ganhassem muito tempo de avanço. Desta forma e a faltar pouco para a meta da montanha o Toni arrancaria e pontuava.
Os ataques em subida eram fortes, logo o meu ritmo em subida também tinha que ser forte. Confesso que ia quase no meu limite, mas dava para aguentar aquele ritmo até bem perto do final da montanha. Só que a falta cerca de 3 quilómetros para a meta o Toni, que está fortíssimo e confiante, disparou! E o pelotão encetou uma perseguição.
Com isto e já no limite das minhas forças comecei a descair no pelotão. Só que este já era muito reduzido e de imediato fiquei na cauda das cerca de 70 unidades que o compunham! Tentei aguentar-me na cauda do pelotão, mas não deu! Faltavam apenas 2 ou 3 km para o final desta montanha mas fui obrigado a descair para o meu dos carros de apoio.
Um dos diretores desportivos que passou por mim, disse-me: “calma que vem lá atrás um grupo muito grande”.
Decidi então não insistir mais e aguardei por esse grupo, pois é mais fácil unir esforços para depois perseguirmos o pelotão principal.
Este grupo era enorme, cerca de 50-55 unidades. Quase meio pelotão estava ali. E eu tinha sido um dos responsáveis por tamanho “estrago” ao ter imposto o ritmo na subida. Posso dizer que mordi a minha própria língua. Obriguei muitos ciclistas a ficar para a trás, mas depois acabei também por ir ter com eles!

Restava-nos agora unir esforços e perseguir o pelotão da dianteira. Mas essa tarefa tornou-se bem mais complicada do que nós imaginava-nos. Os ataques lá na frente eram constantes! E enquanto aquilo não acalmasse um pouco, dificilmente conseguiríamos recuperar os cerca de 1-2 minutos que tínhamos de atraso.
Andámos muitos quilómetros a 2-3 minutos desse pelotão. Até que muitos do meu pelotão começaram a perder a esperança de uma junção e deixaram de colaborar na perseguição. O fosso foi aumentando, aumentando, ...

Mentalizei-me então que teria que fazer os cerca de 80-90km do que restava da etapa num pelotão com pouco mais de 50 unidades. Mais uma situação inédita para mim. Fazer uma etapa quase completa num grupo com tanto tempo de atraso! Não é uma situação fácil de assimilar, sobretudo para quem estava habituado a andar sempre na frente, a disputar os primeiros lugares da classificação. No fundo a ser um dos principais protagonistas do espetáculo que é a Volta.
Mas são estas situações e novas experiências que nos tornam cada vez mais fortes e preparados para os obstáculos que a vida nos prepara.

Mesmo integrado num grupo atrasado, foi impressionante as palavras de incentivo que ouvi durante toda a etapa! A palavra que mais se tem ouvido nesta Volta a Portugal, é sem sombra de dúvida “GAMITO”. Fico muitas vezes sem jeito. Os ciclistas estrangeiros que não sabem quem é ou foi o Gamito, acham estranhíssimo um ciclista que vai atrasado ter tanta popularidade.
Mas afinal que é o Gamito? Neste momento já nem eu sei! Só sei o que fiz, em tempos, só não imaginava que as pessoas ainda se lembrassem. Costuma-se dizer que o ser-humano tem memória curta. Mas acho que no que respeita a sentimentos mais profundos, isso não é verdade.

Estamos a meio da Volta a Portugal. O cansaço começa-se a acumular, as dores musculares a aumentar. Subir 5 degraus de escada já se torna doloroso. As massagens começam a deixar de ser agradáveis para serem um mal necessário e importante à recuperação. O bronzeado à ciclista começa a ser mais que evidente, e por mais que comamos, os ossos do corpo começam a ficar mais pontiagudos. E a nossa Ana ( Fisiotorres Lda), cada dia que passa, tem mais “clientes” para tratar.
Isto é a Volta a Portugal! Se eu podia estar confortavelmente num sofá a assistir pela TV a este espetáculo? Podia pois, mas não era a mesma coisa.

Nesta foto, o mais novo do pelotão - 19 anos, com o mais cota, ou seja, eu com 44 anos. Curiosamente chegou ontem comigo no tal grupo atrasado

Obrigado por tudo até mais logo, em Viseu.

#ImpossibleIsNothing

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